Quando a garotinha Lara vê um estranho apontar uma arma contra seu pai, um pensamento lhe vem à mente: ele está sem a capa mágica! Imediatamente, a menina (interpretada por Ashlyn Sanchez) corre para protegê-lo, crendo vestir a tal capa que ele lhe dera. Na hora em que o simplório logista Farhad (Shaun Toub) aperta o gatilho contra o chaveiro Daniel (Michael Peña), a menina já se colocou entre os dois. A imagem é impactante! Ao final, Daniel descobre, atônito, que sua filha não sofreu o menor arranhão. A própria Lara exclama: “Esta capa é boa mesma!” Só depois o expectador entenderá que as balas do revólver do velho Farhad foram substituídas por festim.
A cena, uma das mais emocionantes do premiado filme Crash – no limite [1], nos leva a refletir sobre fé e realidade. No caso, não foi o uso da capa mágica que salvou Lara, embora ela cresse nisto. Sua visão inocente a faz interpretar o mundo de forma mágica, supersticiosa. E, no enredo, sua crença é apoiada por uma coincidência – uma arma sem munição.
Para muitas pessoas, o mesmo tipo de coincidência acontecia quando Jesus relacionava cura ou perdão à fé ativa de seus ouvintes, ao lhes afirmar: “Sua fé o salvou”(Mt. 9:22; Lc. 7:50; 17:19; 18:42). Ou seja: a fé dessas pessoas as levava a atribuir ao sobrenatural uma cura alcançada por outros fatores. O bem-estar não tinha sua causa na fé; tratava-se de uma coincidência.
No entanto, a Bíblia confere o papel ativo de curar a Jesus (veja Mt. 4:23; 9:35; 12:15; Lc. 7:21; 22:51). A fé era apenas a confiança necessária para se apropriar do benefício oferecido. Não havia nas curas feitas por Cristo um choque entre a superstição ingênua e um fato concreto, unidos por uma coincidência. Havia, sim, o choque do poder divino com o elemento humano, unidos por um tipo de fé praticável num mundo real.
Apenas uma fé desta natureza possibilita ao cristão uma abordagem segura do mundo. Não aquela fé fantasiosa; porém, uma crença crítica, que interprete corretamente a realidade ao redor da pessoa.
Observe as palavras do apóstolo Pedro: “Tenham no coração de vocês respeito por Cristo e o tratem como Senhor. Estejam prontos para responder a qualquer pessoa que pedir que expliquem a esperança que vocês têm.” (1 Pe. 3:15, NTLH). Pedro nos avisa sobre o dever de estarmos preparados para justificar nossa fé – quer nas boas, como nas desfavoráveis circunstâncias (como é o caso do contexto em que ele escreve).
Responder é a tradução do termo grego apologian, de onde surgiu o conceito de apologia. Na sociedade secular, apologia está relacionada à defesa de uma idéia ou de alguma coisa. Assim, pode-se falar em fazer apologia à maconha, à união civil entre homossexuais ou até ao desempenho da Seleção Brasileira de Futebol (bem, acho que ninguém chega a tanto!). Contudo, ao longo da História Cristã, a Apologia se constituiu na prática de argumentar em favor da própria fé, reivindicando-a em face aos constantes ataques de seus adversários.
Pedro tem em mente uma apresentação da fé em qualquer situação, sempre que o cristão se deparar com questionamento de um não-cristão[2]. Em termos mais simples, o cristão necessitará estar a postos a fim de dar um esclarecimento sobre o que acredita.[3] Deste modo, fica claro que o genuíno filho de Deus possui uma fé que se apóia em evidências, a qual ultrapassa a noção de superstição. A fé pode, deve e precisa ser explicada de forma racional, de maneira que as demais pessoas sejam capazes de assimilar suas pressuposições.
Você pode se perguntar: “como me preparar para responder a razão da minha fé?” Só é possível justificar a fé quando se vive conscientemente a fé. “Antes santificai a Cristo, como Senhor, em vossos corações”, são as palavras iniciais do verso de Pedro que você leu a princípio (com a diferença que a citação agora segue a Almeida Contemporânea). Esta claro que esta experiência em viver para honrar a Deus não é construída no vácuo. Pedro relaciona a purificação da consciência à regeneração que aconteceu no momento em que a Palavra de Deus foi plantada em nós (I Pe. 1:22 e 23). Eu reconheço Jesus e decido-me a honrá-Lo quando me submeto a Sua Palavra, que passa a ser a lente pela qual interpreto o mundo.
Neste processo, minha postura acaba chamando a atenção e, inevitavelmente, vou ser questionado a respeito daquilo em que acredito; daí, será a hora de fazer apologia com “mansidão e respeito, conservando boa consciência” (1 Pe. 3:16, NVI). Defender a Verdade não é tornar-se um pitbull, rosnando contra os que não concordarem com suas opiniões.
Você e eu corremos também o perigo de viver segundo textos-fantasmas, quer dizer, inventar ou interpretar textos da Bíblia para nos favorecer ou apoiar nossa vontade. Como disse Brennan Manning: “[…] Não existe limite para as defesas que inventamos contra as transgressões da verdade em nossa vida.”[4] Temos de ser honestos. Uma leitura seletiva da Bíblia equivale a tornar a fé uma superstição ignorante; seguir esta fé flácida e acertar será uma questão de coincidência. Lembre-se de que somente a fé bíblica fundamenta uma visão coerente da realidade, capaz de nos guiar seguramente em meio à “maneira vazia de viver” e às “doutrinas destruidoras” que existem no mercado (1Pe. 1:18, NVI; 2 Pe. 2:1, NTLH).
[1] Crash – no limite (USA, 2004, Bull's Eye Entertainment / DEJ Productions / Bob Yari), dirigido por Paul Haggis.
[2] Russell P. Shedd, “Nos passos de Jesus: uma exposição de I Pedro” (São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 2005), 4ª reimpressão, p. 67.
[3] Ênio R. Mueller, “I Pedro: Introdução e comentários” (São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 2006), 3ª reimpressão, p. 196.
[4] Brennan Manning, “Convite à loucura” (São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2007), p. 16.