Entre os que foram chamados para dirigir a igreja das trevas do papado à luz de uma fé mais pura, achava-se Martinho Lutero. Não conhecendo outro temor senão o de Deus, e não reconhecendo outro fundamento para a fé além das Escrituras Sagradas, Lutero foi o homem para o seu tempo.
Os primeiros anos de Lutero foram passados no humilde lar de um camponês alemão. Seu pai pretendia que ele fosse advogado, mas Deus tencionava fazer dele um construtor no grande templo que tão vagarosamente se vinha erigindo através dos séculos. Agruras, privações e severa disciplina foram a escola na qual a Sabedoria Infinita preparou Lutero para a missão de sua vida.
O pai de Lutero era homem de espírito ativo. Seu genuíno bom-senso levava-o a considerar com desconfiança a organização monástica. Desgostou-se com Lutero quando este, sem seu consentimento, entrou para o convento. Dois anos decorreram antes que se reconciliasse com o filho, e mesmo então suas opiniões permaneceram as mesmas.
Os pais de Lutero esforçavam-se por instruir os filhos no conhecimento de Deus. Ardorosos e perseverantes eram seus esforços por preparar os filhos para uma vida útil. Por vezes exerciam severidade excessiva, mas o próprio reformador encontrava em sua disciplina mais para aprovar do que para condenar.
Na escola Lutero foi tratado com aspereza e mesmo violência. Muitas vezes passou fome. As tristes e supersticiosas idéias sobre religião, então prevalecentes, enchiam-no de temor. À noite deitava-se com o coração triste, em contínuo terror ao pensar em Deus como um cruel tirano, em vez de bondoso Pai celestial.
Ao ingressar na Universidade de Erfurt, suas perspectivas eram mais brilhantes do que nos primeiros anos. Os pais, havendo conseguido certo bem-estar pela economia e trabalho, puderam prestar-lhe todo o auxílio necessário. E a influência de amigos criteriosos diminuiu, até certo ponto, os efeitos sombrios de seu aprendizado anterior. Sob influências favoráveis, seu espírito logo se desenvolveu. A incansável aplicação logo o colocou em primeiro plano entre seus companheiros.
Lutero não deixava de iniciar cada dia com oração, em que o íntimo estivesse continuamente a respirar uma súplica de orientação: “Orar bem”, dizia ele muitas vezes, “é a melhor metade do estudo” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 2, cap. 2).
Um dia, enquanto examinava os livros da biblioteca da universidade, Lutero descobriu uma Bíblia latina, livro que nunca vira antes. Tinha ouvido porções dos evangelhos e epístolas, e supunha que isso fosse a Bíblia toda. Agora, pela primeira vez, olhava para o todo da Palavra de Deus. Com reverência e admiração folheava as páginas sagradas e lia por si mesmo as palavras de vida, detendo-se a fim de exclamar: “Oh! se Deus me concedesse possuir tal livro!” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 2, cap. 2). Anjos estavam a seu lado. Raios da luz divina revelavam tesouros da verdade à sua compreensão. Profunda convicção de seu estado pecaminoso apoderou-se dele como nunca antes.
Paz com Deus
O desejo de encontrar paz com Deus levou-o a devotar-se à vida monástica. Foi-lhe exigido que efetuasse os mais humildes trabalhos e mendigasse de porta em porta. Suportou pacientemente a humilhação, crendo ser necessária por causa de seus pecados.
Furtando-se ao sono e cedendo mesmo o tempo empregado em suas escassas refeições, deleitava-se no estudo da Palavra de Deus. Achara uma Bíblia acorrentada à parede do convento, e a ela muitas vezes recorria.
Levava vida austera, esforçando-se por meio de jejuns, vigílias e penitências para subjugar os males de sua natureza. Disse ele mais tarde: “Se fora possível a um monge obter o Céu por suas obras monásticas, eu teria certamente direito a ele. [...] Se eu tivesse continuado por mais tempo, teria levado minhas mortificações até a própria morte” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 2, cap. 3). Com todos os seus esforços, o coração sobrecarregado não encontrou alívio. Finalmente foi arrojado às bordas do desespero.
Quando pareceu a Lutero que tudo estava perdido, Deus lhe suscitou um amigo. Staupitz abriu a Palavra de Deus ao espírito de Lutero e orientou-o a não olhar para si mesmo, mas a Jesus. “Em vez de torturar-te por causa de teus pecados, lança-te nos braços do Redentor. Confia nEle, na justiça de Sua vida, na expiação de Sua morte. [...] O Filho de Deus [...] Se fez homem para dar-te a certeza do favor divino. [...] Ama Aquele que primeiro te amou”(J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 2, cap. 4). Essas palavras produziram profunda impressão na mente de Lutero. Veio-lhe a paz ao espírito perturbado.
Lutero foi ordenado ao sacerdócio, sendo chamado para o cargo de professor na Universidade de Wittenberg. Começou a fazer conferências sobre os Salmos, os Evangelhos e as Epístolas, às multidões que se deleitavam em ouvir. Staupitz, seu amigo e superior, insistia que ele subisse ao púlpito e pregasse. Mas Lutero se sentia indigno de falar ao povo em lugar de Cristo. Foi apenas depois de longa luta que cedeu às solicitações dos amigos. Era poderoso nas Escrituras, e sobre ele repousava a graça de Deus. A clareza e poder com que apresentava a verdade levavam-nos à convicção, e seu fervor tocava os corações.
Lutero era ainda um verdadeiro filho da igreja papal, e não tinha idéia alguma de que houvesse alguma outra coisa. Levado a visitar Roma, seguiu viagem a pé, hospedando-se nos mosteiros, pelo caminho. Encheu-se de admiração ante a magnificência e luxo que testemunhou. Os monges habitavam em esplêndidos apartamentos, ornamentavam-se em custosas vestes e banqueteavam-se em suntuosas mesas. A mente de Lutero se tornou perplexa.
Contemplou finalmente, à distância, a cidade das sete colinas. Prostrou-se ao solo, exclamando: “Santa Roma, eu te saúdo!” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 2, cap. 6). Visitou as igrejas, ouviu as histórias maravilhosas repetidas pelos padres e monges, e cumpriu todas as cerimônias exigidas. Por toda parte via cenas que o enchiam de espanto — iniqüidade entre o clero, gracejos imorais dos prelados. Horrorizou-se com sua espantosa profanidade, mesmo durante a missa. Deparou-se com desregramento e libertinagem. “Ninguém pode imaginar”, escreveu ele, “que pecados e ações infames se cometem em Roma. [...] Por isso costumam dizer: ‘Se há inferno, Roma está construída sobre ele’” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 2, cap. 6).
A verdade junto à escada de Pilatos
Fora prometida certa indulgência a todos os que subissem de joelhos a “escada de Pilatos”, que se dizia ter sido miraculosamente transportada de Jerusalém para Roma. Lutero estava certo dia subindo devotamente esses degraus, quando de súbito uma voz semelhante a trovão pareceu dizer-lhe: “O justo viverá por fé” (Romanos 1:17). Ergueu-se de um salto, envergonhado e horrorizado. Desde aquele tempo, viu mais claramente a falácia de se confiar nas obras humanas para a salvação. Deu as costas a Roma. O afastamento se tornou cada vez maior, até vir a romper todo contato com a igreja papal.
Depois de voltar de Roma, Lutero recebeu o grau de doutor em teologia. Estava agora na liberdade de se dedicar, como nunca antes, às Escrituras que amava. Fez solene voto de ensinar com fidelidade a Palavra de Deus, e não a doutrina dos papas. Não mais era o simples monge, mas o autorizado arauto da Bíblia, chamado como pastor a fim de alimentar o rebanho de Deus, que tinha fome e sede da verdade. Declarava firmemente que os cristãos não deveriam receber outras doutrinas a não ser as que se apóiam na autoridade das Sagradas Escrituras.
Ávidas multidões apegavam-se às suas palavras. As alegres novas do amante Salvador, a certeza de perdão e paz mediante Seu sangue expiatório alegravam-lhes o coração. Acendeu-se em Wittenberg uma luz cujos raios deveriam aumentar em brilho até ao final dos tempos.
Mas entre a verdade e o erro há conflito. Nosso Salvador mesmo declarou: “Não vim trazer paz, mas espada” (Mateus 10:34). Disse Lutero, uns poucos anos após o início da Reforma: “Deus [...] me impele avante. [...] Desejo viver em repouso; mas sou arrojado ao meio de tumultos e revoluções” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 5, cap. 2).
Indulgências à venda
A igreja de Roma mercadejava com a graça de Deus. Com a alegação de levantar fundos para a construção da igreja de S. Pedro, em Roma, indulgências pelo pecado eram oferecidas à venda por autorização do papa. Pelo preço do crime dever-se-ia construir um templo para o culto a Deus. Foi isto que suscitou o mais eficaz dos inimigos do papado, determinando a batalha que abalou o trono papal e fez tremer na cabeça do pontífice a tríplice coroa.
Tetzel, o oficial designado para dirigir a venda das indulgências na Alemanha, era culpado das mais ignóbeis ofensas à sociedade e à lei de Deus; no entanto, foi empregado para promover os projetos mercenários do papa na Alemanha. Repetia deslumbrantes falsidades e histórias maravilhosas para enganar um povo ignorante e supersticioso. Tivesse este a Palavra de Deus, e não teria sido enganado desta maneira; mas a Bíblia havia sido retirada (John C. L. Giesler. A Compendium of Ecclesiastical History, per. 4, seção 1, parágrafo 5.).
Ao entrar Tetzel numa cidade, um mensageiro ia adiante dele, anunciando: “A graça de Deus e do santo padre está às vossas portas!” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 3, cap. 1). O povo recebia o pretensioso blasfemo como se fosse o próprio Deus. Tetzel, subindo ao púlpito da igreja, exaltava as indulgências como o mais precioso dom de Deus. Declarava que em virtude de seus certificados de perdão, todos os pecados que o comprador mais tarde quisesse cometer, ser-lhe-iam perdoados, e que “mesmo o arrependimento não é necessário” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 3, cap. 1). Assegurava aos ouvintes que as indulgências tinham também poder para salvar os mortos; no mesmo instante em que o dinheiro tinia de encontro ao fundo de sua caixa, a alma em cujo favor era pago escaparia do purgatório, ingressando no Céu (K. R. Hagenbach. History of the Reformation, v. 1, p. 96).
Ouro e prata eram canalizados para o tesouro de Tetzel. Uma salvação que se comprava com dinheiro era mais fácil do que aquela que exige arrependimento, fé e diligente esforço para resistir ao pecado e vencê-lo.
Lutero encheu-se de horror. Muitos de sua própria congregação haviam comprado certidões de perdão. Logo começaram a dirigir-se a seu pastor, confessando seus pecados e esperando absolvição, não porque estivessem arrependidos e desejassem corrigir-se, mas sob o fundamento da indulgência. Lutero recusou-se a isto, advertindo-os de que, a menos que se arrependessem e reformassem a vida, haveriam de perecer em seus pecados. Voltaram-se a Tetzel queixando-se de que seu confessor lhes recusara o certificado, e alguns exigiram ousadamente que lhes fosse restituído o dinheiro. Cheio de ira, o frade proferiu terríveis maldições, fez com que se acendessem fogos nas praças públicas e declarou “haver recebido ordem do papa para queimar todos os hereges que pretendessem opor-se às suas santíssimas indulgências” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 3, cap. 4).
Começa a obra de Lutero
A voz de Lutero foi ouvida do púlpito em solene advertência. Expôs ao povo o caráter ofensivo do pecado, ensinando ao povo ser impossível ao homem, por suas próprias obras, diminuir as culpas ou evadir-se do castigo. Nada, a não ser o arrependimento para com Deus e a fé em Cristo, pode salvar o pecador. A graça de Cristo não pode ser comprada; é um dom gratuito. Aconselhou o povo a não comprar indulgências, mas a olhar com fé para o Salvador crucificado. Relatou sua própria e penosa experiência e afirmou a seus ouvintes que foi por crer em Cristo que encontrara paz e alegria.
Prosseguindo Tetzel com suas ímpias pretensões, Lutero decidiu-se a um protesto mais eficaz. A igreja do castelo de Wittenberg possuía relíquias que em certos dias santos eram expostas ao público. Concedia-se completa remissão de pecados a todos os que então visitassem a igreja e se confessassem. Uma das mais importantes destas ocasiões, a festa de “Todos os Santos”, aproximava-se. Lutero, unindo-se à multidão que já seguia para a igreja, afixou na porta desta, noventa e cinco proposições contra a doutrina das indulgências.
Suas proposições atraíram a atenção geral. Eram lidas e repetidas por todos os lados. Estabeleceu-se grande excitação na cidade inteira. Mostrava-se por essas teses que o poder de conferir perdão e remir de sua pena jamais fora confiado ao papa ou a qualquer homem. Mostrava-se claramente que a graça de Deus é livremente concedida a todos os que a buscam com arrependimento e fé.
As teses de Lutero se espalharam por toda a Alemanha, e em breves semanas repercutiam por toda a Europa. Muitos dedicados romanistas leram as proposições com grande regozijo, reconhecendo nelas a voz de Deus. Pressentiam que o Senhor estendera a mão para deter a maré de corrupção que provinha de Roma. Príncipes e magistrados secretamente se regozijavam de que estava para ser posto um paradeiro ao arrogante poder que negava o direito de apelo diante de suas decisões.
Ardilosos eclesiásticos, vendo perigar seus lucros, encolerizaram-se. O reformador teve atrozes acusadores a enfrentar. “Quem é que não sabe”, respondia ele, “que raramente um homem apresenta uma idéia nova sem [...] que seja acusado de suscitar rixas? [...] Por que foram mortos Cristo e todos os mártires? Porque [...] apresentavam idéias novas sem ter primeiro humildemente tomado conselho com os oráculos das antigas opiniões”(J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 3, cap. 6).
As exprobrações dos inimigos de Lutero, a difamação de seus propósitos e as maldosas observações acerca de seu caráter, sobrevieram-lhe como um dilúvio. Ele confiava que os dirigentes se uniriam alegremente a ele na reforma. Viu, com expectativa, um dia mais radiante despontar para a igreja.
Mas o estímulo converteu-se em condenação. Muitos dignitários da Igreja e do Estado logo viram que a aceitação dessas verdades implicaria em minar virtualmente a autoridade de Roma, sustando milhares de torrentes que ora fluíam para o seu tesouro, cerceando assim grandemente o luxo dos chefes papais. Ensinar o povo a buscar apenas a Cristo para a salvação subverteria o trono do pontífice, destruindo finalmente sua própria autoridade. Desta forma, dispuseram-se contra Cristo e a verdade pela sua oposição ao homem que Ele enviara para os esclarecer.
Lutero tremia quando olhava para si mesmo — um só homem opondo-se às mais poderosas forças da Terra. “Quem era eu”, escreveu ele, “para opor-me à majestade do papa, perante quem os reis da Terra e o mundo inteiro tremiam? [...] Ninguém poderá saber o que meu coração sofreu durante estes primeiros dois anos, e em que desânimo, poderia dizer em que desespero, me submergi” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 3, cap. 6). Quando, porém, faltou o apoio humano, olhou para Deus somente. Poderia confiar-se em perfeita segurança àquele braço todo-poderoso.
A um amigo escreveu Lutero: “Teu primeiro dever é começar pela oração. [...] Nada esperes de teus próprios trabalhos, de tua própria compreensão: confia somente em Deus, e na influência de Seu Espírito”(J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 3, cap. 7). Eis aqui uma lição de importância para os que sentem que Deus os chamou para apresentar a outros as solenes verdades para esse tempo. No conflito com os poderes do mal, há necessidade de algo mais que o intelecto e a sabedoria humana.
Lutero apela à Bíblia unicamente
Quando os inimigos apelavam aos costumes e tradições, Lutero os enfrentava com a Bíblia, e estes eram argumentos que eles não podiam refutar. Dos sermões e escritos de Lutero procediam raios de luz que despertavam e iluminavam a milhares. A Palavra de Deus era semelhante a uma espada de dois gumes, abrindo caminho ao coração do povo. Os olhos das pessoas, havia tanto dirigidos para ritos humanos e mediadores terrestres, volviam-se agora em fé para Cristo, e Este crucificado.
Esse interesse generalizado despertou os temores das autoridades papais. Lutero foi intimado a comparecer em Roma. Seus amigos sabiam do perigo que o ameaçava naquela corrupta cidade, já embriagada com o sangue dos mártires de Jesus. Requereram que ele fosse interrogado na Alemanha.
Assim se fez, e foi designado o núncio papal para ouvir o caso. Nas instruções a esse legado, afirmou-se que Lutero já fora declarado herege. O núncio foi, portanto, encarregado de o “processar e constranger sem demora”. O legado recebeu poderes “para proscrevê-lo em todas as partes da Alemanha; banir, amaldiçoar e excomungar todos os que estivessem ligados a ele”, e a excomungar a todos de qualquer dignidade na Igreja ou Estado — exceto ao imperador — caso negligenciassem prender Lutero e seus adeptos, entregando-os à vingança de Roma (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 4, cap. 2).
Nenhum indício de princípios cristãos, ou mesmo de justiça comum pôde ser notado nesse documento. Lutero não tivera oportunidade de explicar ou defender sua posição; no entanto, foi declarado herege, e no mesmo dia exortado, acusado, julgado e condenado.
No momento em que Lutero tanto necessitava de conselho de um genuíno amigo, Deus enviou Melâncton a Wittenberg. O bom discernimento de Melâncton, combinado com a pureza e retidão de seu caráter, conquistaram admiração geral. Logo se tornou o mais fiel amigo de Lutero. Sua brandura, prudência e exatidão serviam de complemento à coragem e energia do reformador.
Augsburgo fora designada como o lugar para o processo, e o reformador para lá se dirigiu a pé. Foram feitas ameaças de que seria assassinado no caminho, e seus amigos rogaram-lhe que não se aventurasse. Mas sua linguagem era: “Sou como Jeremias, homem de contendas e lutas; mas, quanto mais aumentam suas ameaças, mais cresce a minha alegria. [...] Já destruíram minha honra e reputação. [...] Quanto a minha alma, não a podem tomar. Aquele que deseja proclamar a verdade de Cristo ao mundo deve esperar a morte a cada momento” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 4, cap. 4).
As notícias da chegada de Lutero a Augsburgo deram grande satisfação ao representante do papa. O perturbador herege que despertava a atenção do mundo parecia agora em poder de Roma; ele não escaparia. O embaixador do papa pretendia obrigar Lutero à retratação; se não o conseguisse, faria com que fosse levado a Roma, para participar da sorte de Huss e Jerônimo. Por conseguinte, mediante seus agentes, esforçou-se por induzir Lutero a comparecer sem salvo-conduto, confiante em sua misericórdia. Isto o reformador recusou-se firmemente a fazer. Antes que recebesse o documento hipotecando-lhe a proteção do imperador, não compareceu à presença do embaixador papal.
Por uma questão política, os romanistas haviam decidido ganhar Lutero por uma aparência de amabilidade. O legado papal mostrava grande amizade, mas exigia que Lutero se submetesse implicitamente à igreja e cedesse em todos os pontos, sem argumentação ou questionamento. Lutero, em resposta, exprimiu sua consideração pela igreja, seu desejo de verdade, sua prontidão em responder a todas as objeções ao que havia ensinado, e em submeter suas doutrinas à decisão das principais universidades. Mas ele protestou contra a maneira de agir do cardeal, que lhe exigia a retratação sem ter provado estar ele em erro.
A única resposta foi: “Retrate-se, retrate-se!” O reformador mostrou que sua posição era apoiada pela Escritura. Não poderia renunciar à verdade. O legado, incapaz de responder ao argumento de Lutero, cumulou-o com uma tempestade de exprobrações, zombarias, escárnios e lisonjas, citando tradições e dizeres dos Pais da Igreja, sem deixar ao reformador a oportunidade de falar. Lutero finalmente obteve relutante permissão para apresentar sua resposta por escrito.
Disse ele, escrevendo a um amigo: “O que está escrito pode ser submetido ao juízo de outrem; segundo, tem-se melhor oportunidade de trabalhar com os temores, se é que não com a consciência, de um déspota arrogante e palrador, que do contrário dominaria pela sua linguagem imperiosa” (Martyn. The Life and Times of Luther, p. 271, 272.).
Na próxima entrevista, Lutero apresentou uma exposição clara, concisa e poderosa de suas opiniões, apoiada pela Escritura. Este documento, depois de o ter lido em voz alta, entregou ao cardeal, que o lançou desdenhosamente de lado, declarando ser ele um acervo de palavras ociosas e citações irrelevantes. Lutero defronta então o prelado em seu próprio terreno — as tradições e ensinos da igreja — e derrota literalmente suas afirmações.
O prelado perdeu todo domínio de si mesmo e, colérico, exclamou: “Retrate-se! ou o mandarei a Roma.” E finalmente declarou, em tom altivo e irado: “Retrate-se, ou não volte mais!” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 4, cap. 8).
O reformador se retirou prontamente com os amigos, declarando assim plenamente que nenhuma retratação se deveria esperar dele. Isto não era o que o cardeal se propusera. Agora, deixado só com os que o apoiavam, olhava para um e para outro, em completo desgosto pelo inesperado fracasso de seus planos.
A grande assembléia presente tivera oportunidade de comparar os dois homens, e julgar por si do espírito manifestado por eles, bem como da força e verdade de suas posições. O reformador, simples, humilde, firme, permanecia ao lado da verdade; o representante do papa, importante aos próprios olhos, despótico, desarrazoado, achava-se sem um único argumento das Escrituras, e ainda assim exclamava veementemente: “Retrate-se, ou será enviado a Roma.”
Escapando de Augsburgo
Os amigos de Lutero insistiram que lhe era inútil permanecer ali, devendo retornar a Wittenberg sem demora, e ainda assim com a máxima cautela. De acordo com isto, ele deixou Augsburgo antes do raiar do dia, a cavalo, acompanhado apenas de um guia fornecido pelo magistrado. Atravessou sem ser percebido as ruas escuras da cidade. Inimigos, vigilantes e cruéis, estavam a conspirar para a sua destruição. Aqueles foram momentos de ansiedade e fervorosas orações. Atingiu uma pequena porta no muro da cidade. Esta lhe foi aberta e, com o guia, passou por ela. Antes que o legado soubesse da partida de Lutero, ele se achava além do alcance de seus perseguidores.
Com as notícias da fuga de Lutero, o legado ficou dominado de surpresa e cólera. Esperara receber grande honra por seu tino e firmeza ao tratar com o perturbador da igreja. Numa carta a Frederico, o eleitor da Saxônia, denunciou com amargura a Lutero, exigindo que Frederico enviasse o reformador a Roma ou que o banisse da Saxônia.
O eleitor possuía ainda pouco conhecimento das doutrinas reformadas, mas estava profundamente impressionado pela força e clareza das palavras de Lutero. Até que se provasse estar o reformador em erro, Frederico resolveu permanecer como seu protetor. Em resposta ao pedido do legado, escreveu: “Visto que o Dr. Martinho compareceu perante vós em Augsburgo, deveríeis estar satisfeito. Não esperávamos que vos esforçásseis por fazê-lo retratar-se sem o haver convencido de seus erros. Nenhum dos homens doutos de nosso principado me informou de que a doutrina de Martinho seja ímpia, anticristã ou herética” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 4, cap. 10). O eleitor via ser necessária uma obra de reforma. Secretamente se regozijava de que uma influência melhor se estivesse fazendo sentir na igreja.
Apenas um ano decorrera desde que o reformador afixara as teses na igreja do castelo e, no entanto, seus escritos haviam suscitado por toda parte um novo interesse pelas Escrituras Sagradas. Não somente de todos os recantos da Alemanha, como ainda de outros países, estudantes se congregavam na universidade. Moços, vislumbrando Wittenberg pela primeira vez, “erguiam as mãos ao Céu e louvavam a Deus por ter feito com que desta cidade a luz da verdade resplandecesse” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 4, cap. 10).
Lutero ainda não estava de todo convertido dos erros do romanismo. Mas ele escreveu: “Estou lendo os decretos do pontífice e [...] não sei se o papa é o próprio anticristo, ou seu apóstolo, tão grande é a maneira em que Cristo é neles representado falsamente e crucificado” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 5, cap. 1).
Roma exasperou-se cada vez mais com os ataques de Lutero. Oponentes fanáticos, até mesmo doutores das universidades católicas, declaravam que aquele que matasse o monge estaria sem pecado. Deus era a sua defesa. Suas doutrinas eram ouvidas em toda parte — “nas cabanas e nos conventos, [...] nos castelos dos nobres, nas universidades e nos palácios dos reis” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 6, cap. 2).
Por esse tempo Lutero constatou que a grande verdade da justificação pela fé havia sido sustentada pelo reformador boêmio, Huss. “Nós todos”, disse Lutero, “Paulo, Agostinho, e eu mesmo, temos sido hussitas, sem o saber!” “A verdade foi pregada [...] há um século e queimada!” (Wylie. Livro 6, cap. 1).
Lutero escreveu sobre as universidades: “Receio muito que as universidades se revelem grandes portas do inferno, a menos que diligentemente trabalhem para explicar as Santas Escrituras, e gravá-las no coração dos jovens. [...] Toda instituição em que os homens não se achem incessantemente ocupados com a Palavra de Deus, tem de se tornar corrupta” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 6, cap. 3).
Esse apelo circulou por toda a Alemanha. A nação inteira foi abalada. Os oponentes de Lutero insistiam que o papa tomasse medidas decisivas contra ele. Decretou-se que suas doutrinas fossem imediatamente condenadas. O reformador e seus adeptos, se não abjurassem, deveriam todos ser excomungados.
Crise terrível
Foi uma terrível crise para a Reforma. Lutero não tinha os olhos fechados à tempestade prestes a irromper, mas confiava que Cristo lhe seria apoio e escudo. “O que está para acontecer não sei, nem cuido de sabê-lo. [...] Nem ao menos uma folha tomba ao solo sem a vontade de nosso Pai. Quanto mais não cuidará Ele de nós! Coisa fácil é morrer pela Palavra, visto que a própria Palavra Se fez carne e morreu” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 6, cap. 9).
Quando a bula papal chegou a Lutero, disse ele: “Desprezo-a e ataco-a, como ímpia e falsa. [...] É o próprio Cristo que nela é condenado. [...] Sinto já maior liberdade em meu coração; pois finalmente sei que o papa é o anticristo, e que o seu trono é o do próprio Satanás” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 6, cap. 9).
Todavia a ordem de Roma não foi sem efeito. Os fracos e supersticiosos tremiam perante o decreto do papa, e muitos sentiam que a vida era por demais preciosa para ser arriscada. Deveria ser encerrada a obra do reformador?
Mas Lutero continuava destemido. Com terrível poder ele rebateu contra a própria Roma a sentença de condenação. Na presença de uma multidão de cidadãos, Lutero queimou a bula papal. Disse ele: “Uma luta séria acaba de começar. Até aqui tenho estado apenas a brincar com o papa. Iniciei esta obra no nome de Deus; ela se concluirá sem mim, e pelo Seu poder. [...] Quem sabe se Deus não me escolheu e chamou, e se eles não deverão temer que, ao desprezar-me, desprezem ao próprio Deus? [...]
“Deus nunca escolheu como profeta nem o sumo sacerdote, nem qualquer outro grande personagem; mas comumente escolhia homens humildes e desprezados, e uma vez mesmo o pastor Amós. Em todas as épocas, os santos tiveram que reprovar os grandes, reis, príncipes, sacerdotes e sábios, com perigo de vida. [...] Não estou dizendo que sou profeta; mas digo que eles devem temer precisamente porque estou só e eles são muitos. Disto estou certo: que a Palavra de Deus está comigo, e não com eles” (J. H. Merle D’Aubigné. History of the Reformation of the Sixteenth Century, livro 6, cap. 10).
Entretanto, não foi sem terrível luta consigo mesmo que Lutero se decidiu por uma separação definitiva da igreja: “Oh! quanta dor me causou, posto que eu tivesse as Escrituras a meu lado, o justificar a mim mesmo que eu ousaria assumir atitude contra o papa, e tê-lo na conta de anticristo! Quantas vezes não fiz a mim mesmo, com amargura, a pergunta que era tão freqüente nos lábios dos adeptos do papa: ‘Só tu és sábio? Poderão todos os demais estar errados? Como será se, afinal de contas, és tu que te achas errado, e estás a envolver em teu erro tantas pessoas, que então serão eternamente condenadas?’ Era assim que eu lutava comigo mesmo e com Satanás, até que Cristo, por Sua própria e infalível Palavra, me fortaleceu o coração contra estas dúvidas” (Martyn, p. 372, 373.).
Apareceu nova bula, declarando a separação final do reformador, da Igreja Romana, denunciando-o como amaldiçoado do Céu, e incluindo na mesma condenação todos os que recebessem suas doutrinas.
A oposição é o quinhão de todos aqueles a quem Deus emprega para apresentar verdades especialmente aplicáveis a seu tempo. Havia uma verdade presente nos dias de Lutero; há uma verdade presente para a igreja hoje. A verdade, porém, não é mais desejada pela maioria de hoje, do que o era pelos romanistas que se opunham a Lutero. Os que apresentam a verdade para este tempo não devem esperar ser recebidos com mais favor do que o foram os primeiros reformadores. A grande controvérsia entre a verdade e o erro, entre Cristo e Satanás, há de aumentar em intensidade até ao final da história deste mundo (João 15:19, 20; Lucas 6:26).
(Ellen G. White. O Grande Conflito, p. 56-66)