O aparentemente pacato Clyde Shelton (Gerard Butler) presencia sua mulher e filha serem violentadas e mortas. Como testemunha de um crime, ele espera a justiça, confiando no promotor Nick Rice (Jamie Foxx). Entretanto, Rice faz um acordo com um dos bandidos, diminuindo sua pena por ter ele colaborado em outra investigação. Dez anos depois, Shelton volta para se vingar.
A partir desse ponto, o filme Código de Conduta dá uma guinada. Requintes de crueldade e sofisticação extrema passam a fazer parte do arsenal de Clyde Shelton. Porém, o ponto alto da aventura é revelar como a sede de justiça pode conduzir à desidratação própria da vingança. Claro que ver Shelton mutilar o assassino de sua família trará satisfação natural a alguns; entretanto, se justiça for equivalente a fazer o outro sofrer para além do crime, isso, em si, não constituiria um crime também passível de punição?
Antes de mais nada, cabe nos perguntarmos: É possível definir limites morais bem delineados? Bem e mal estão irremediavelmente misturados ou é possível distingui-los?
Se não há absolutos, o que há?
No cristianismo, existem absolutos bem definidos: Deus é o Criador do bem e o que vai contra Sua vontade é, por oposição, o mal. Mas, como já fizemos notar, a mentalidade de nossa época (zeitgeist) é chamada de pós-modernismo. Uma de suas características é o relativismo. Evidentemente, isso se estende para o campo da ética. Então, que alternativas existem quando se abandona a noção de bem e mal definidos por padrões universais?
Há quase 50 anos, o pensador reformado Francis Schaeffer respondeu essa questão: “Se não há absoluto moral, resta-nos o hedonismo (fazer o que bem se entende) ou alguma forma de contrato social (o que é melhor para a sociedade como um todo está certo).”[1] Sua afirmação ecoa em escritos recentes de pensadores não cristãos.
Michel Onfray, conhecido filósofo ateu, assim caracteriza a era pós-cristã na qual vivemos: “Não há valores, ou não há mais valores. Mais ou menos virtudes. Uma incapacidade de distinguir claramente os contornos éticos e metafísicos. Tudo parece bom e bem, o mal inclusive, tudo pode ser dito belo, até o feio, o real parece menos verdadeiro do que o virtual, a ficção substitui a realidade, a história e a memória não fazem mais sucesso em um mundo devoto do instante presente, desconectado com o futuro. O niilismo qualifica a época em que falta toda cartografia: as bússolas fazem falta e os projetos para sair da floresta onde estamos perdidos nem sequer são pensáveis.”
Para ele, a moral não é dada, não é “um problema teológico entre homens e Deus”, mas “história imanente que une os homens entre si, sem nenhuma testemunha”. Logo, segundo o filósofo, “a moral universal, eterna e transcendente cede lugar à ética particular, temporal e imanente”.[2]
Para além do hedonismo de Onfray, existe a ética comunitária defendida pelo falecido filósofo ateu Richard Rorty. Ele acreditava que verdade é um termo que se refere a “entidades e crenças” que, por se mostrarem úteis, foram “incorporadas às práticas sociais aceitas”. Não existe, portanto, verdade objetiva. Cada tradição intelectual ou religiosa encara a verdade de uma forma diferenciada, a qual não seria melhor ou pior do que outras verdades.
“Tudo o que precisamos”, pondera Rorty, “é abandonar a ideia de que deveríamos tentar encontrar uma maneira de fazer tudo permanecer unido, que dirá aos seres humanos o que fazer com suas vidas, dizendo a todos a mesma coisa”. [3] O pragmatismo de Richard Rorty transparece na seguinte analogia: “Dedicar-se a um ideal é como dedicar-se a outro ser humano. Quando nos apaixonamos por outra pessoa, não nos questionamos sobre a origem ou sobre a natureza de nosso esforço em cuidar do bem-estar daquela pessoa. É igualmente inútil fazê-lo quando nos apaixonamos por um ideal […] é tolice pedir uma prova de que as pessoas que amamos são as melhores pelas quais poderíamos nos apaixonar.”[4]
Problemas à vista
Quando se observa a posição hedonista e a ética pragmática, percebe-se que, na prática, elas trazem imensas dificuldades! Imagine que todos pudessem fazer o quisessem, sem limites (como prega o hedonismo); isso seria o caos! Igualmente, se cada sociedade ou comunidade ideológica está tão certa quanto qualquer outra, elas não poderiam ser julgadas de nenhum modo. Em um diálogo com um ateu, ele fez referência a países nos quais, culturalmente, não há problema em se agredir mulheres. Mas isso estaria correto apenas por ser a cultura daquelas pessoas? Ou a mulher possui valor ontológico (ou seja, valor pela natureza de seu próprio ser), independentemente da cultura?
Mesmo não cristãos reconhecem a dificuldade de se aceitar uma ética não fundamentada em uma verdade absoluta. “Sem a aceitação de tais validades [universais e reconhecíveis], ao que parece, formações sociais não podem ser configurações humanamente vivenciáveis de liberdade concreta. Também uma sociedade pluralista apenas é uma sociedade à medida que não é pluralista, senão que constitui identidade.”[5]
O próprio Schaeffer apontou os defeitos das abordagens éticas que descartam referenciais absolutos: “Sem absolutos, a moral deixa de existir como moral e o homem humanista, que parte de si mesmo, encontra-se impossibilitado de encontrar os absolutos de que ele carece.”[6] Precisamos de certezas morais para o dia a dia. Como observamos, a visão pós-moderna falha em prover um fundamento moral, assim como, antes dela, o racionalismo iluminista falhou em dar respostas. Assim, não de se estranhar que muitos eticistas têm recorrido à ética cristã. Mas será que essa ética é confiável?
Ética Bíblica: uma revolução confiável
É preciso dizer que os cristãos concordam em parte com muitas outras ideologias ou religiões; em parte, isso acontece porque cremos que Deus Também Se revelou por meio de Sua criação (Sl 19:1, Rm 1:18-32). No campo da ética, isso quer dizer que as pessoas podem assumir comportamentos corretos, mesmo se não forem cristãs. Mas o cristianismo fornece uma base mais ampla para comportamentos éticos porque o Seu fundamento põe o homem em contato com o Seu Criador, a quem deve prestar contas (Ec 12:14). Além disso, a ética bíblica está preocupada mais com a vontade interna do que meramente com a ação exterior (Mt 5:21,22, 27,28).
Ao introduzir uma ética absoluta, o monoteísmo bíblico “revolucionou a vida religiosa dos povos antigos”. Na verdade, o “Deus da Bíblia não Se limita a propor dogmas de fé à adesão dos fiéis, mas proclama, antes de tudo, normas imperativas de conduta, a serem escrupulosamente observadas na vida de todos os dias.”[7] Na prática, o cristianismo ajudou progressivamente a levar igualdade social a todos os povos.[8]
Ninguém que opte por uma ética particular ou comunitária pode ter certeza de que está, definitivamente, agindo de forma ética ou correta. O que temos nesse caso? Ou a nossa opinião, ou a de nossos pares. Mas, na ética bíblica, temos a garantia de obedecer Àquele que afirmou fazer “diferença entre o justo e o ímpio” (Ml 3:18).
(Douglas Reis)
Perguntas para Discussão:
1. Quando a justiça corre o risco de degenerar em mera vingança? O que fazer quando a justiça humana falha ou parece insuficiente?
2. Quais são alguns riscos da ética pós-moderna? Mencione ao menos três.
3. Leia Isaías 5:20. de acordo com o que voc~e leu nesta lição, que critérios podemos usar para definir bem e mal?
Saiba Mais
Francis Schaeffer, O Deus que Intervém (São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2002).
Stanley Grenz, A Busca Pela Moral: fundamentos da ética cristã (São Paulo: Vida, 2006).
Referências
1. Francis Schaeffer, O Deus que Intervém (São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2002), p.166.
2. Michel Onfray, A Potência de Existir: manifesto hedonista (São Paulo, SP: Martins Fontes, 2010), p. 33, 47.
3. Richard Rorty, Filosofia Como Política Cultural (São Paulo, SP: Martins fontes, 2009), p. 24, 25, 28, 61.
4. Idém, Uma Ética Laica (São Paulo, Martins Fontes, 2010), p. 16.
5. Arno Anzenbacher, Introdução à Filosofia Ocidental (Petrópolis, RJ: Vozes, 2009), p. 188. Grifo no original. O autor ainda define verdade como “pretensão de validade resgatável” (p. 189), ou seja, como algo que pode ser examinado.
6. Schaeffer, op. cit, p. 168.
7. Fábio Konder Comparato, Ética: direito, moral e religião no mundo moderno (São Paulo, SP: Cia. das Letras, 2006), p. 67, 69.
8. Adolfo Sánchez Vázquez, Ética (Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2008), p. 277.