E se em vez de serem todos de espécies diferentes, os diversos homens primitivos cujos fósseis têm sido encontrados ao longo dos anos em diversos locais — Homo habilis, Homo rudolfensins, Homo erectus e outros — fossem todos membros de uma única e mesma espécie de humanos e as suas diferenças físicas apenas refletissem a normal variabilidade entre indivíduos dessa espécie? Os autores de um novo estudo comparativo de crânios fósseis humanos encontrados no Cáucaso, e publicado esta sexta-feira na revista Science, afirmam que é precisamente isso que os seus resultados sugerem.
A peça-chave do trabalho desenvolvido nos últimos oito anos por David Lordkipanidze, director do Museu Nacional da Geórgia, e uma equipa internacional de colegas, é um crânio — designado Crânio 5 — com quase 1,8 milhões de anos. O seu maxilar inferior foi encontrado em 2000 na escavação arqueológica de Dmanisi (a uns 100 quilómetros de Tbilisi, a capital da Geórgia) — e o resto do seu rosto e cabeça em 2005.
“O Crânio 5 é um achado extraordinário”, explicou em conferência de imprensa telefónica a co-autora Marcia Ponce de León, da Universidade de Zurique (Suíça). “É o crânio fóssil mais completo de sempre de um adulto do género Homo. Encontra-se num estado de conservação perfeito (...) e [a segunda peça] foi encontrada cinco anos depois do maxilar a menos de dois metros de distância [da primeira].”
Acontece que o Crânio 5 não era de todo o que os cientistas esperavam, visto o carácter maciço do maxilar previamente desenterrado. Estavam à espera de um crânio de grande tamanho, mas depararam-se, pelo contrário, com uma caixa craniana pequena por cima de um grande rosto, numa combinação de traços morfológicos nunca antes observada num homem primitivo.
Crânio 5 e irmãos
Também em Dmanisi foram encontrados, ao longo dos anos, mais quatro crânios (apenas um sem maxilar inferior), algumas ferramentas de pedra e ossos fossilizados de animais — achados que, segundo estudos anteriores, são vestígios deixados por um grupo de humanos que viveu no mesmo sítio ao mesmo tempo. “O tempo que demorou a formação geológica do local foi bastante breve, o que permite concluir que a sedimentação de todos os ossos [de homens primitivos] aconteceu em simultâneo”, explicou Lordkipanidze. “Dmanisi é como uma cápsula do tempo que preservou um ecossistema de há 1,8 milhões de anos.”
Os crânios de Dmanisi permitem realizar análises comparativas que até aqui não eram possíveis. E de facto, perante a descoberta do resto do Crânio 5 e da sua inédita anatomia, tornou-se necessário explicar as diferenças físicas patentes entre os cinco crânios humanos daquele sítio paleontológico, que fazem com que alguns deles sejam mais bem classificados como Homo habilis e outros como Homo erectus. Poderiam estes homens primitivos, que ao que tudo indica faziam parte da mesma comunidade, ter pertencido a várias espécies diferentes de humanos? “Sabíamos que vieram do mesmo local e do mesmo período geológico; podiam portanto representar uma única população de uma única espécie”, salientou Christoph Zollikofer, um outro co-autor, também da Universidade de Zurique.
Para determinar qual destas duas possibilidades — uma ou várias espécies — era a mais provável e, em particular, se era possível que o nível de variação observado naqueles fósseis se verificasse no seio de uma única espécie, os cientistas recorreram a métodos de morfometria 3D computadorizada. Por outro lado, para garantirem a compatibilidade dos novos resultados com estudos comparativos anteriores, também aplicaram métodos mais tradicionais de comparação de características morfológicas.
Diferentes mas iguais
Conclusão: “A nossa análise estatística mostra que os padrões e a magnitude da variabilidade dos crânios de Dmanisi são semelhantes aos das populações de espécies modernas”, disse Zollikofer. “Embora os cinco indivíduos de Dmanisi sejam claramente diferentes uns dos outros, não são mais diferentes entre eles do que cinco humanos modernos ou cinco chimpanzés numa dada população.” Ou seja, “a diversidade no interior de uma espécie é a regra e não a excepção”. Os cientistas decidiram designar essa potencial única espécie pelo nome Homo erectus, por ser a mais bem documentada e consensual de todas as espécies de homens primitivos cujos fósseis se conhecem.
Os novos resultados poderão ter implicações em termos da classificação das espécies de hominídeos que viviam em África e saíram de lá há cerca de dois milhões de anos, espalhando-se pela Europa e a Ásia fora, especulam os cientistas. “Há duas maneiras de interpretar a diversidade dos hominídeos fósseis”, explicou Zollikofer. “A primeira é que apenas existiu uma linhagem de homens primitivos; a segunda é que houve múltiplas linhagens coexistentes.”
“Se a caixa craniana e a face do Crânio 5 tivessem sido encontradas separadamente em locais diferentes de África, poderiam ter sido atribuídas a duas espécies diferentes”, acrescentou. Mas visto que os fósseis de Dmanisi provêm indubitavelmente do mesmo ponto no tempo e no espaço — e que parecem ter todos pertencido a uma única espécie de homens primitivos —, o mesmo poderá ter acontecido em África.
A conclusão não convence toda a gente. Enquanto um paleontólogo citado num artigo jornalístico (também publicado na Science, da autoria de Ann Gibbons) recusa liminarmente a ideia de que todos os fósseis africanos possam ter sido Homo erectus, um outro é da opinião que o Crânio 5 parece um Homo habilis. E um terceiro faz notar que a ideia está fazer o efeito de uma pequena bomba na comunidade dos especialistas.
(Ciência - Público)
(Ciência - Público)