O pensamento pós-moderno, que há décadas permeia a cultura ocidental, produz uma ética peculiar, a qual contrasta marcadamente com a moralidade cristã. Como exercício de pensamento, esse pequeno artigo se propõe a remodelar os dez mandamentos (Êx 20), [1] ajustando-os a premissas pós-modernas, para clarificar aspectos do espírito da época, bem como ressaltar a dicotomia entre a ideologia relativista do século XXI [2] e o absolutismo moral do teísmo bíblico; para cumprir a segunda parte da proposta, citaremos resumidamente cada mandamento, antes de "questioná-lo" pós-modernamente.
1º Mandamento: "Não terás outros deuses diante de mim": cada qual pode ter quantos deuses quiser, desde que respeite os deuses alheios, e que a divindade eleita seja inserida em seu contexto comunitário; nenhum deus será imposto a outrem, porque a tolerância é um valor preponderante, a tal ponto de impedir que se faça julgamentos morais. No fim das contas, cada indivíduo acaba servindo não a um deus, mas fazendo uso das divindades disponíveis no mercado religioso para que elas o sirvam, auxiliando em suas necessidades;
2º Mandamento: "Não farás para ti imagem de escultura": lagos já serviram de espelho; depois, as pessoas se penteavam em frente a metais polidos. Daí vieram os espelhos de vidro. Hoje, com a popularização da câmera digital, é possível registrar, difundir e editar a própria imagem. A imagem precede o valor na pós-modernidade. Aliás, a imagem é geradora e gestora de valores, criando aspirações individuais e coletivas. A iconografia tornou-se iconolatria;
3º Mandamento: "Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão": eis o período quando os deuses não representam absolutos, pois devido ao aspecto irreverente da pós-modernidade (visível através do recurso da colagem nas artes visuais, por exemplo), a junção mística entre o sagrado e o profano é mais do que desejável, além de ser encarada sem reservas. O nome do Deus cristão, presente no libreto das cantatas de Haendel hoje é entoado nas estrofes de pagodes, hard-rocks, bate-estacas e o que mais possa fazer os quadris mexerem. Sem mencionarmos a conduta moral descompromissada com a mensagem bíblica daqueles que se acreditam cristãos;
4º Mandamento: "Lembra-te do dia de sábado": numa época em que se colhem frutos variados da revolução científica, a verdade histórica cristã de uma criação em sete dias literais ficou relegada a um mito, na melhor das hipóteses. A própria adoração perdeu seu conteúdo histórico e seu programa normativo ficou empobrecido. Na prática, quem autentifica a adoração é o próprio adorador, escolhendo a forma e os dias em que deseja adorar, e até quem ou o que será alvo de sua adoração;
5º Mandamento: "Honra teu pai e tua mãe": atualmente, a família mal sobrevive aos fatores resultantes da revolução sexual, como a desagregação de seus membros, as reivindicações por parte de homossexuais a rés da união civil, o movimento feminista, a proliferação de uma sexualidade hedonista, etc. Sendo assim, torna-se inviável honrar o que se acha dissolvido e em processo de solvência e desintegração;
6º Mandamento: "Não matarás": até mesmo um mandamento universal vem sendo objeto de profundos debates, no que diz respeito às implicações do direito à preservação da vida. Questões bioéticas (aborto, células-tronco, etc.) e envolvendo a pena capital, junto com a polêmica sobre a eutanásia, revelar-se-iam espectros do fastio com a própria existência, em face da perda de sentido para a vida?;
7º Mandamento: "Não adulterarás": quando a liberdade de Sartre passou a vigorar no Ocidente, implicou na abertura para uma nova busca, orientada pelo prazer. Consequentemente, nada é moralmente errado, desde que traga prazer. Fica difícil de controlar o acesso à pornografia por adolescentes ou combater a pedofilia, uma vez que a sociedade perdeu o senso de censura quando o assunto é prazer; pedófilos, por exemplo, estariam levando as premissas hodiernas aos últimos resultados lógicos. Portanto, como condená-los se a base moral da sociedade é a mesma seguida por eles? O que dizer a maridos adúlteros, se a própria atitude deles é incentivada e justificada pelos meios de comunicação?;
8º Mandamento: "Não furtarás": dentro de uma ética situacionista, bens, ideias e oportunidades são avidamente roubados, ainda mais quando não se tem meios honestos de adquiri-los; a demanda pelo sucesso material é tão incisiva que "obriga" os desfavorecidos a buscar rotas alternativas para compensar sua desqualificação, nem que isso se dê pela ilegalidade;
9º Mandamento: "Não dirás falso testemunho": a verdade se tornou um artigo maleável, num mundo que admite a coexistência de verdades customizadas (e axiologicamente excludentes). Nessas circunstâncias, a falta de verdade anula a possibilidade de haver mentira, sendo a definição rigorosa de mentira uma não-verdade. Perde-se, assim, a discriminação do que é falso ou verdadeiro;
10º Mandamento: "Não cobiçarás as coisas alheias": (bens, cônjuges, etc.): uma vez que o consumo proporciona prazer e o exercício da capacidade de escolha, tem importância pivotal no pós-modernismo, acabando por definir também a identidade e valor individual. O consumismo, enquanto comportamento do século XXI, decorre do desejo cobiçoso, no qual o indivíduo procura se identificar com determinado grupo social através da aquisição dos mesmos bens de consumo, uso dos mesmos serviços e imagens exteriores semelhantes. A cobiça é, desse prisma, elemento primordial na corrida por pertencer, característica de nosso tempo.
1. Uso a expressão "remodelar" para identificar o processo de releitura (associado ao cerne da filosofia pós-modernista, e presente nas artes desse período) que ora aplico aos Dez Mandamentos. Daí o texto ser "Os Dez Mandamentos revisados" e não algo como "Os Dez Mandamentos do Pós-Modernismo", o que daria a impressão de termos novos mandamentos, diferentes em tudo daqueles encontrados na Bíblia.
2. Para maiores detalhes sobre o surgimento do pensamento pós-moderno, ler Pós-Modernidade à luz de 2 Pedro, disponível aqui.
(Douglas Reis - Questão de Confiança)
(Douglas Reis - Questão de Confiança)